Literatura Brasileira: Modos de Usar (2003), de Luís Augusto Fischer


O Brasil teve uma modernidade tardia, como fora tardio tudo o mais. Até mesmo a família real portuguesa chegou tarde nestas terras promissoras. Quando o continente americano recebeu a tradição europeia, os atrasos na importação/exportação cultural tiveram reflexos na formação nacional. Neste sentido, a literatura também segue caminhos tardios. Um fato objetivo; menos uma análise pessimista das origens de nossas desigualdades. Luís Augusto Fischer, no livro Literatura Brasileira: Modos de Usar (2003), avalia que o realismo inaugurou uma tradição em nossa literatura que perdura até os dias presentes. De Machado de Assis, Aluísio de Azevedo, José de Alencar, passando por Jorge Amado, Graciliano Ramos, Erico Verissimo, chegando até Roberto Drummond, Rubem Fonseca, Ana Miranda e outros tantos. Ainda segundo o autor, este legado realista se origina no sentimento daqueles portugueses que nos colonizaram, que tinham a convicção do “não vale a pena”, sentimento” (…) marcado por falta de método, de previdência, por uma espécie de desleixo (…)”. Seríamos realistas, pois, por falta de perspectivas. Resta provado que nem todos os autores mergulham de cabeça no realismo. Há aparição singulares que destoam de tais gênero. Vide um Augusto dos Anjos ou uma Clarice Lispector; esta, no íntimo psicológico, aquele, no íntimo físico. A pós-modernidade, intrínseca à internet como registro de todo o conhecimento humano, reduziu as distâncias do tempo. Todas as épocas podem ser consumidas por igual, a qualquer momento. As ideias do realismo se fundiram numa perspectiva surreal. O avesso do avesso, como melhor se lhe aprouver. De todo o modo, parece que a literatura brasileira acordou tarde para o banquete cultural, mas teve a malandragem de aparecer na hora da sobremesa.

> Literatura Brasileira – Modos de Usar. Escrito por Luís Augusto Fischer. Publicado originalmente em 2003 pela editora Abril. Relançado em 2007 na coleção L&PM Pocket.

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Além dos limites do oceano (2001), de Mauricio Obregón


Como falar de amor sem citar os astros? Como falar dos astros sem citar o amor? Quando Romeu quis, em nome da lua, jurar que amava Julieta, a jovem donzela lhe disse: “Ah, não jures pela lua! A lua é inconstante e muda a cada mês em sua órbita circular, e teu amor pareceria variável também“. Julieta sabia do que falava. Se os astros são inconstantes, por que nós também não o seríamos?

O colombiano Mauricio Obregón, no último livro que escreveu antes de se encontrar com as estrelas, Além dos limites do oceano (2002), reconta as histórias míticas dos gregos através das correntes marítimas e das fontes luminosas do espaço sideral. Segundo os escritos de Obregón, as estrelas nem sempre se encontraram na mesma posição em que as vemos. E é a partir disso que ele procura identificar onde Homero teria escrito a Odisseia.

Instiga-nos saber que os céus estão muito mais próximos de nossas vidas do que poderíamos imaginar. As noites trazem consigo a possibilidade de observar não só o brilho das estrelas, mas também o infinito do cosmos. É como se estivéssemos no meio do oceano, quando o mar se confunde com o céu num único azul. Curiosamente, nos mais de sete mares descobertos também encontramos estrelas: no reflexo das águas e as estrelas-marinhas propriamente ditas.

Guiados por correntes marítimas, tanto os argonautas (que teriam vindo da Polinésia e povoado a América) quanto os gregos navegaram rumo ao desconhecido. Não estariam eles guiados por um nobre sentimento de amor? E os astros não os teriam influenciado ainda mais que os “mares nunca de antes navegados“, qual registrara Camões? Resta-nos tão somente imaginar algumas respostas convincentes sem nunca chegar à verdade do Universo, o que de fato pouco importa quando se ama.

> Além dos limites do oceano. Escrito por Mauricio Obregón. Originalmente publicado em 2001. Edição brasileira pela Ediouro (2002).

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Abaixo de Zero (1985), de Bret Easton Ellis


Primeira obra do escritor Bret Easton Ellis, Abaixo de Zero carrega em si uma abordagem bastante direta da geração dos anos 1980 na cidade de Los Angeles. Nas férias da faculdade, o protagonista Clay vem passar as festas de fim de ano com a sua família e seus amigos. Festas, por sinal, não faltam na rotina quase inconsequente de Clay e de sua turma. Um dia após o outro, estes jovens de famílias ricas com pais aparentemente desligados da realidade se reúnem em eventos cheios de gente e vazios de conteúdo.

Para uma geração dita perdida como aquela oitentista, não poderiam faltar bebidas, sexo e drogas. O dinheiro, sempre fundamental nesse mundo de diversão, também amplia a futilidade daqueles dias idos. Mesmo sendo uma obra de ficção, Abaixo de Zero apresenta uma noção muito viva e presente do autor que, à época lançamento do livro, tinha a mesma idade de suas personagens principais.

Nos muitos diálogos do livro, percebemos como aquela geração não via limites em sua ações. Vejamos uma frase dita pelo traficante de drogas Rip para o protagonista Clay:

“- O que é certo? Se você quer uma coisa, tem o direito de tomar. Se quer fazer uma coisa, tem o direito de fazer.”

Ao encontrar seus amigos de infância e também uma ex-namorada, Clay não sabe muito bem como agir e se revela excepcionalmente ruim com os sentimentos.

O diálogo entre Clay e a garota, quase ao final do livro, é muito revelador nesse aspecto:

“- Pelo que você se interessa? O que o faz feliz?

– Nada. Nada me interessa. Não gosto de nada.

– Você já se interessou por mim alguma vez, Clay?

Não me manifesto, olho de novo para o cardápio.

– Você já se interessou por mim?

– Não quero me interessar. Se eu me interessar pelas coisas vai ser pior. É menos doloroso não ligar.”

Em 1987, o livro gerou uma adaptação cinematográfica, tendo como protagonistas os atores Robert Downey Jr., Andrew Macarthy e Jami Gertz. Abaixo de Zero foi publicado originalmente em 1985 e lançado no Brasil em 2011, numa parceria entre as editoras Rocco e L&PM Pocket. Em 2010, o autor publicou nos EUA a continuação da história, que ganhou o título de Suítes Imperiais. Desta vez, as personagens envelheceram quase três décadas e ganharam destinos inusitados, seja por estarem mais experientes e/ou conformadas com o que se tornaram. 

Se há uma moral que fica abaixo de zero é que o vazio também enche.

Abaixo de Zero. Escrito por Bret Easton Ellis. Lançado originalmente nos Estados Unidos em 1985. Publicado pela editora Rocco no Brasil em 1987. Republicado numa parceria entre Rocco e L&PM Pocket em 2011.

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O coração amarelo (1974), de Pablo Neruda


Há alguns poetas que se eternizaram durante a vida. Outros, apenas quando as mortes lhe ceifaram verbo e versos ganharam um lugar na História literária.

No idioma de Camões, a inculta e bela língua portuguesa, Fernando Pessoa foi não mais que um poeta de uma única obra publicada em livro durante a vida, a inigualável Mensagem. Em terras desterradas ao sul do Paralelo Central, Cruz e Sousa não obteve o reconhecimento merecido em vida. Deixou-nos inéditos seus Últimos Sonetos, publicados na aurora do século vinte parisiense, sete anos após sua morte em 1989.

Já na língua de Cervantes, o castelhano – idioma-irmão do português! –, Federico García Lorca teve obras de reconhecido valor literário publicadas em vida ou postumamente. Para além do fim trágico (um assassinato ainda hoje repleto de dúvidas), o poeta espanhol foi também um amigo próximo do chileno Pablo Neruda.

Numa vida entremeada pelas atividades políticas e poéticas, Neruda se candidatou à presidência do Chile em 1970 e, na sequência, desistiu para apoiar seu amigo Salvador Allende. No ano seguinte, recebeu o Prêmio Nobel de Literatura quando exercia a função de embaixador na França. Ao receber a honraria, humildemente destacou em seu discurso: “Não aprendi nos livros nenhuma receita para a composição de um poema; e também não deixarei impresso nem sequer um conselho, modo ou estilo para que os novos poetas recebam de mim alguma gota de suposta sabedoria”. Com a derrubada de Allende por um golpe militar em 11 de setembro de 1973, o Chile mergulhou numa violenta ditadura e seu poeta maior faleceu 12 dias depois.

Pablo Neruda deixou oito livros inéditos: O coração amarelo, Livro das perguntas, Elegia, A rosa separada, Jardim de inverno, 2.000, O mar e os sinos e Defeitos escolhidos, todos publicados no Brasil pela L&PM Editores. As obras contam com poesias escritas de modo quase simultâneo, permeadas por lirismo e um tipo de consciência tenra que a vida lhe impingiu.

Em tom de despedida bem-humorada, O coração amarelo revela um autor saudosista, prevendo que seu país mergulharia em anos lúgubres, mas ciente de que sua pena não poderia calar: “De tanto andar uma região / que não figurava nos livros / acostumei-me às terras tenazes / em que ninguém me perguntava / se me agradavam alfaces / ou se preferia a menta / que devoram os elefantes. / E de tanto não responder / tenho o coração amarelo”.

As poesias tem cores eternas. Abrindo caminho qual uma nau no “plácido e azul encanto” de Fernando Pessoa, passando pela “alva do alvor das límpidas geleiras” de Cruz e Sousa, encontrando um virgem mundo no “verde que te quero verde” de Federico García Lorca, e chegando às batidas finais do “coração amarelo” de Pablo Neruda. Arco-irizemo-nos!

> O coração amarelo. Escrito por Pablo Neruda. Tradução de Olga Savary. Título original: El corazón amarillo. © Fundación Pablo Neruda, 1974. Publicado pela primeira vez no Brasil em 1982 pela L&PM Editores. Primeira edição na coleção L&PM Pocket em 2004.

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Brás, Bexiga e Barra Funda (1927), de Antônio de Alcântara Machado


Das urbanicidades o escritor retira farto material para as crônicas que nunca se acabam, ainda que sejam limitadas pelos bairros. Brás, Bexiga e Barra Funda, sob a pena de Antônio de Alcântara Machado, principiam um cotidiano de cidade grande com ares miúdos; corriqueiros como um corte de cabelo por 600 réis ou uma bolinha feita de meia perdida no meio da rua. Daí que as histórias se sobrepõem ao intempestivo tempo. De sinas dramáticas, satisfatórias, trágicas… Veja só o Gaetaninho que amassou o bonde quando se limitava ao sonho dos humildes. Beppino, soberbo no terno vermelho, roubou-lhe a cena, não desejando a banca. A vida se faz ou se acaba em sonhos não realizados. Nicolino, garantia de defesa no próximo jogo contra o Esmeralda, padeceu de loucura de algum amor não correspondido. E confessou a própria desgraça. Lisetta, por sua vez, encantou-se com o urso felpudo que só ele. Tanto querer para tão pouca idade. O beliscão da mãe no bonde apenas nuançava as dores futuras. Outro urso, este de lata, numa mal chamada recompensa. Natale, dono do armazém Progresso, não se fazia de rogado para tapear os trouxas: um conto de réis a quem provasse o contrário. José Espiridião bem que tentou sair no lucro, mas não logrou êxito. Tranquillo Zampinetti, barbeiro na Rua do Gasômetro, trazia Itália para cá, levava Itália para lá e o assunto não mudava. Entretanto, também ele queria um buono governo para o Brasil. Mais nada! A naturalização era, pois, inevitável. Destas e de outras gentes, com as origens italianas nos calcanhares, tanto o Brás, quanto o Bexiga e até mesmo a Barra Funda se abasteciam naqueles dias idos. Neste recorte específico da brasilidade, do jornal para o livro, as notícias de São Paulo se fizeram contos.

> Brás, Bexiga e Barra Funda. Escrito por Antônio de Alcântara Machado. Obra publicada pela primeira vez em 1927, numa edição do autor.

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Duas novelas de Harry Laus


Quando um santo mágico aparece na praia ou quando um típico funcionário procura a verdade em relógios idênticos, Harry Laus (1922-1992) nos faz lembrar que há um sentimento de ausência que permeia todas as histórias humanas. Como o autor escreveu no dia 1 de Fevereiro de 1952 em suas Impressões de Vida (Bernúncia, 1998), “creio que chegará um ponto em que, à força de iludir e me iludir, não mais saberei quando estou sendo sincero”. Em suas novelas essa impressão aparenta ser ainda maior tanto pelo desenvolvimento das personagens quanto pela condensação do espaço-tempo.

As obras O Santo Mágico e As Horas de Zenão das Chagas, novelas cujas edições publicadas na década de 1980 serviram para a realização deste texto, não apenas exemplificam esses argumentos como também elevam à máxima potência um gênero literário que fica na crítica fronteira entre a primazia do romance e o caráter conciso do conto. À literatura, convenhamos, não apetece o título de ciência exata.

Em sua incursão novelística quando o autor estava em Porto Belo, Harry Laus colocou personagens e lugares com esmerada descrição para contar o curioso caso de uma aparição na praia da cidade conhecida como O Santo Mágico (Edição do Autor, 1982). Já de início somos apresentados às personagens cujo destino em comum possui ligação com o misterioso clarão azulado que parece ter uma auréola sobre si. A fé talvez seja o questionamento central daquelas figuras literárias, como o pescador Luca (o primeiro a ver o fenômeno), o padre Anatole que se veste de maneira muito peculiar quando se encontra sozinho e o jovem Altair que encontrou a felicidade em Porto Belo junto a mulher e ao filho. E todos acabam por questionar suas próprias verdades mesmo que não se dêem conta disso.

Publicada originalmente em 1957 no suplemento dominical do Jornal do BrasilAs Horas de Zenão das Chagas (Mercado Aberto, 1987), delimita a narrativa num espaço urbano, ainda que sua paisagem seja retratada sutilmente, mantendo essa insatisfação de uma vida semi-completa, tema tão caro aos mestres da escrita; do amor não-correspondido de Dante em Vida Nova às negativas finais da personagem-título de Machado de Assis em Memórias Póstumas de Brás Cubas. O desprendimento da realidade de Zenão é algo tão natural quanto os seus entediantes dias: “O desleixo em que mantém o quarto talvez resulte de certo comodismo que, de forma precária, substitui o conforto que não pode desfrutar”. A história de Zenão situa-se numa região indefinida entre a parábola do cotidiano e a própria vida ordinária com a qual a maioria dos mortais se relaciona sem se dar conta. A personagem traz a inconformidade já em seu nome: O “Zé” que “não” é, ou mesmo aquele que não passa nem mesmo por homem comum. Não obstante, ainda há o sobrenome cujos sinônimos denotam extremo dissabor.

Temos, pois, histórias talhadas em madeira de lei, ainda que com estilos diferentes que as naturezas dos enredos acabam por exigir. O Santo Mágico é uma história que se abre, larva que aos poucos se transforma em borboleta. Já As Horas de Zenão das Chagas é quase como um elevador que se fecha ante os olhares claustrofóbicos do leitor; uma história sobre o tempo passada em época indefinida. Borboleta ou elevador, as novelas de Laus irrefreavelmente sobem, com destino certo às alturas dos melhores prosadores brasileiros.

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Tocando a distância: Ian Curtis e Joy Division (1995), de Deborah Curtis


O perfil que Deborah Curtis traça de seu ex-marido se ampara em tons de cinza, tanto na genialidade de suas canções executadas pela banda Joy Division, quanto nas dores d’alma levadas com alguma desfaçatez pelo próprio biografado. Ian Curtis, vocalista e guitarrista da Joy Division, tirou a própria vida com apenas 23 anos, às vésperas de uma turnê com a banda pelos Estados Unidos. Antes disso, teve interesses tão diversos e sem relação como a Segunda Grande Guerra, asilos nos quais as pessoas eram esquecidas ou personalidades que cometeram suicídio.

Deborah retirou o mínimo escondido do tempo em que esteve ao lado de Ian, revisitando a própria memória e entrevistando colegas do passado para criar o livro Tocando a distância: Ian Curtis e Joy Division. Bernard Sumner (guitarra e teclado), Peter Hook (baixo) e Stephen Morris (bateria), ex-integrantes da Joy Division, também estão presentes com depoimentos pontuais na obra que vai além de uma biografia padrão. Eis as memórias sobre um casal que alternou pequenos dramas urbanos, incluindo a penúria financeira e as traições do marido, com momentos divertidos e felizes, seja curtindo shows de rock ou acompanhando os primeiros passos da filha.

Os dias de fama de Ian Curtis no final da década de 1970 foram acompanhados pelos altos e baixos de sua personalidade. Além disso, os ataques de epilepsia agravaram ainda mais seu humor, evitando até mesmo se aproximar da filha recém nascida. A melancolia das letras escritas por Ian e as melodias pesadas da Joy Division provocaram aquele incômodo necessário ao rock num período pós-punk.

Toda biografia tem de ser interpretada como um recorte, uma possibilidade da verdade vivida por alguém. Entre as qualidades de Deborah Curtis como autora, talvez a que mais se destaque seja a forma com que narra os fatos sem poupar as críticas aos outros e a si mesma. Mesmo a incapacidade de enxergar o que se passava na mente de Ian (ainda que a impossibilidade de tal ato seja uma condição humana) se desnuda com uma honestidade singular.

Escreve Deborah: “Creio que Ian escolheu o prazo dele. Era importante manter a farsa diante da banda, para evitar que tentassem dissuadi-lo. A única razão pela qual ele não estava preocupado com a turnê americana era porque ele sabia que não iria” (página 161*). Inegavelmente, não foi a morte de Ian Curtis que o imortalizou, mas justamente os dias em que viveu de modo tão intenso.

> Tocando a distância – Ian Curtis e Joy Division (Touching from a Distance: Ian Curtis and Joy Division). Escrito por Deborah Curtis. Lançado originalmente na Inglaterra pela editora Faber & Faber em 1995. Publicado em 2014 no Brasil pela Edições Ideal*.

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A liberdade de Hamlet


Sem papas na língua, Hamlet não chegou ao fundo do poço por dizer o que pensava, mas sim porque já havia percorrido o topo do mundo munido de sua ferramenta mais ilustre: o pensamento. Para o príncipe da Dinamarca o resto foi silêncio, mas para nós aqui do outro lado das páginas o resto estourou como uma bomba moral; e, mesmo sem o gás lacrimejante, as lágrimas escorreram na certeza de uma caminhada humana contraproducente.

A loucura de Hamlet, criada qual o melhor disfarce detetivesco, determina uma mudança no entendimento da realidade. Essa sensação de que algo lhe escapa e de que nem mesmo a fé, o amor, a arte, o progresso ou os sonhos trarão uma satisfação tão sublime quantos as possibilidades sugerem. Rosencrantz e Guildenstern poderiam ser bons amigos, mas o príncipe não busca esperança no outro – afinal, já é muita responsabilidade ter de lidar com a morte de Ofélia, única pessoa em sua história recente por quem teve algum apreço e empatia. A dor dela, para o bem e para o mal, é a mesma daqueles para os quais os sentimentos importam contrários à razão.

Há alguma ingenuidade em acreditar que a vingança do fantasma (também chamado Hamlet e outrora pai do príncipe) se dá apenas por questões políticas ou por ciúme – afinal, seu irmão Cláudio usurpou-lhe o trono e sua mulher Gertrudes num ato vil de regicídio. Oras, o Fantasma, avistado inicialmente por simples guardas quais Marcelo e Bernardo, é o chamado nebuloso pelo qual alguém pode esperar uma vida inteira sem ter por onde. Quis o destino (ou Shakespeare, vá lá) tornar a aparição também visível aos olhos do gentil Horácio, a quem restou a difícil tarefa de relatar o estranho acontecimento ao legítimo herdeiro do trono. Vai daí que a conversa entre Hamlet e o fantasma seja também um ponto sem retorno, no qual as glórias serão deixadas de lado porque a consciência lhe será o único reinado – a digna nobreza que não tem a ver com castelos ou soberania alheia.

Ser ou não ser sugere fim e início. Se há história, sempre haverá drama – e quais de nós estarão livres no desfecho disso tudo? Hamlet, de alguma maneira trágica, descobre a liberdade na ponta de uma espada envenenada porque também não era redenção o que lhe apetecia. Sua partida serena ainda lhe permite profetizar questões menores, políticas até, como a escolha de Fortimbrás que chega da Inglaterra com notícias das quais o príncipe nunca saberá. Se Hamlet seria um grande rei como o próprio Fortimbrás aponta? O resto é imaginação.

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Shakespeare, Cervantes e Borges: a história vive da palavra


A história nada mais é do que interpretações. O que fica sempre, pois, é o texto. Neste sentindo, considero todo e qualquer texto uma obra literária e, por sua vez, literatura. Daí a importância até os dias atuais, mesmo em tempos de internet, da palavra escrita. E, com a permissão do escritor argentino Jorge Luis Borges, uso de suas palavras sobre o livro para ilustrar meu argumento: “Dos diversos instrumentos do homem, o mais assombroso é, sem dúvida o livro. Os demais são extensão do seu corpo… Mas o livro é outra coisa, o livro é um extensão da memória e da imaginação”. E o que nos coloca nesse mundo que não seja a imaginação e a memória? O próprio Borges, por sinal, que tantas vezes falou de William Shakespeare, afirmava a universalidade do bardo devido a sua obra que ultrapassava a experiência inglesa. Logo, Shakespeare era quem menos tratava especificamente da Inglaterra entre os autores ingleses e, justamente por isso, tornou-se seu símbolo máximo. Da mesma forma, Borges cita Miguel de Cervantes como ícone da Espanha, sendo o menos espanhol de seus escritores. Cervantes e Shakespeare, não por acaso, dividem a hipotética/fictícia data de morte (23 de abril de 1616) e uma imaginação para lá de extensa. Se a história vive da palavra, então talvez a leitura seja sua complementação inerente. Felizes os que lemos.

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Borges, Shakespeare e Cervantes

 

Bartleby, O Escriturário (1853), de Herman Melville, e Juventude (1898), de Joseph Conrad


Aquele que inventou a juventude desejava perdoar a si mesmo pelas desventuras e, ao mesmo tempo, exaltar uma época com sabor de nostalgia, impregnada no corpo e na mente. São beijos idos e vividos num período singular no qual o descobrir tem muito mais a ver com confrontar a realidade e aceitar a maioria das próprias imperfeições.

Jovens são inocentes porque têm na vontade a maior das justificativas. Jovens podem ser culpados se incapazes de assumir que o mundo não é um local de prazer individual. E, como dois ícones distintos, podemos citar as criações literárias de Herman Melville, com seu Bartleby, O Escriturário, e Joseph Conrad, nas páginas de Juventude, novelas escritas no século XIX.

Melville narra a inquietante história de Bartleby, um jovem escriturário que repentinamente se recusa a fazer o que lhe pedem. E, ante recusa e mais recusa, aos poucos Bartleby também deixa de comer e sua passividade o absorve por completo. Conrad, por sua vez, revela as aventuras do jovem Marlow, um marinheiro disposto a encarar uma viagem cheia de dificuldades até os mares do oriente. Assim, enquanto Bartleby é a ausência de ação, Marlow vive para ela, tornando um a antítese do outro, apresentando as opções que a vida fornece e o que as pessoas, quando jovens, podem fazer a partir disso.

Tenho cá comigo nenhuma certeza sobre quando ou como começa e termina a juventude. Colocaremos isso em idades? 18 e 30 anos, respectivamente? Mas todos não são seres diferentes, com posturas diferentes e desenvolvimentos também diferentes? Dentre minhas poucas certezas, sei que são as diferenças que unem a todos, homens, mulheres, adultos, crianças, jovens, velhos… A juventude, para os jovens, porém, não pode ser medida. Os historiadores já mostraram que as épocas mais bem compreendidas são aquelas já passadas, o que pode ajudar a entender o presente, mas obriga um distanciamento necessário, impossível para os que desejam identificar erros e acertos de suas próprias épocas.

Conheço jovens com os traços passivos de Bartleby, alguns lembram mais a angústia pelo novo típica de Marlow, outros ainda caminham indecisos sobre em qual curva futura virar, e há aqueles, e mais outros e outros…

Independentemente dos tipos que encontramos, parece-nos sempre que a juventude não é mais a mesma que era antigamente. E aí percebemos que talvez nós mesmos não sejamos mais jovens e é o nosso mundo que está tão diferente. Não me sinto velho, mas o fato de escrever sobre a juventude deve significar alguma coisa.

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Dois autores em sintonia: Ernest Hemingway e Mark Twain


Ernest Hemingway e Mark Twain são destes exímios autores de língua inglesa que possuem seus lugares definitivamente marcados na história da literatura mundial. Seus estilos se assemelham em determinados aspectos, sobretudo quando se descobre que Hemingway era um leitor contumaz de Twain e réu confesso de que por este sofreu influências – o que, evidentemente, não desmerece de forma alguma o resultado final de sua obra, pelo contrário, dignificando-a ainda mais.

Quando da análise de As aventuras de Tom Sawyer (Twain) em comparação com o texto do conto Idílio Alpino (Hemingway), fica evidente a descrição melancólica e contemplativa tanto da natureza quanto dos seres humanos. A figura do homem entra em simbiose com o meio: os movimentos de um só podem existir a partir do outro.

No apontamento das diferenças (sutis, mas imprescindíveis para a caracterização do estilo de cada um) entre os dois autores, Ernest Hemingway tende muito mais à objetividade. As palavras utilizadas pelo vencedor do Nobel de Literatura em 1954 estão alocadas meticulosamente, sendo cada vocábulo tão necessário quanto o texto completo. Fica inoportuno retirar algo de um texto que se revela na sua forma final, definitiva. Na novela O Velho e o Mar, o autor também repete essa concisão, quase como uma narrativa jornalística.

Mark Twain valoriza mais os pequenos detalhes, colocando meandros curiosos no texto. As particularidades dos lugares descritos permeiam suas linhas, tornando-as robustas sem que se perca o fio da meada ou se deixe levar por floreios textuais inadequados e repetitivos.

Dois cânones literários que se utilizaram de ferramentas semelhantes para a construção de uma base autoral indiscutivelmente sólida! Entrementes, cada um soube ser único em si mesmo sem negar as influências. Afinal, o leitor sempre precede o autor.

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Mark Twain e Ernest Hemingway

Aquelas outras memórias que Machado de Assis nunca escreveu


O grande livro que Machado de Assis ficou nos devendo seria as Recordações Aquém Túmulo do Lobo Neves. Poderíamos ter com suas desconfianças matrimoniais, as experiências polidas na política, as minudências de uma vida financeiramente estável num Império que caminhava lentamente para sua extinção – Memórias Póstumas de Brás Cubas fora publicado originalmente em folhetins semanais no ano de 1880, enquanto a Proclamação da República ocorreria nove anos mais tarde.

Não. Nada disso. O romance machadiano que nos logrou nos faltar em seria Lembranças do Último Dia na Breve Vida de Nhã Loló, cujo suspiro final se deu com apenas 19 anos e, sendo assim, revelaria o retrato mais fiel desta saudade que nós, brasileiros, temos por tudo aquilo que jamais viemos a ser.

Ou, antes, o oposto mais uma vez: Machado de Assis não nos ficou devendo nada – literariamente falando (e flanando), claro! Nós é que permanecemos em débito para além dos dias, levando o legado de seus escritos até a última fronteira conhecida e àquelas que ainda viremos a conhecer.

Ao Machado de Assis jamais se lhe compete o futuro do pretérito: um autor imortal foi, é e sempre será eterno.

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Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis


Honoré de Balzac, Alexandre Dumas, Charles Dickens e outros tantos romancistas publicaram alguns dos livros mais importantes da humanidade em folhetim, gênero que nasce na França concomitante ao aparecimento da imprensa. Ainda que o talento destes e de outros escritores seja inegável, é preciso ter em mente que a escrita e a consequente publicação em capítulos impressos diária ou semanalmente nos jornais possibilitava ao autor uma relação muito próxima com o público leitor – então, uma parcela muito pequena da sociedade.

No Brasil, escritores como José de Alencar, Manuel Antônio de Almeida, Lima Barreto, Joaquim Manuel de Macedo e, claro, Machado de Assis tiveram suas obras publicadas primeiramente em folhetim. Foi o que aconteceu com o clássico–mor da literatura realista brasileira Memórias Póstumas de Brás Cubas, que saiu em etapas de março a dezembro de 1880, na Revista Brasileira. Somente em 1881 a obra teve seu lançamento em livro pela Tipografia Nacional, órgão que antecede a Imprensa Nacional.

Com sua ironia genuinamente brasileira e salutarmente inspirada por William Shakespeare, a prosa machadiana assimila ainda o vigor da literatura francesa com sua crítica de costumes e análise social forjada na estrutura do romance. O defunto autor (não confunda com um autor defunto) é, em si mesmo, a própria desventura humana, ilusão de uma aristocracia que nunca foi nada além de uma imitação ruim da tradição europeia.

Eis o que sobra do país de Machado de Assis: um emplastro que não chegou a ficar pronto. Quiçá o mundo só faça algum sentido para um defunto que já não tem mais a responsabilidade de se preocupar com o legado de nossa miséria.

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Uns braços (1895), conto de Machado de Assis


Basta um recorte, um fragmento, uma pequena oscilação de timbre para surgir o impensável, a descoberta, um novo ritmo que faz todo o sentido. O que mais encanta na história de maçã caindo na cabeça de Isaac Newton é a simplicidade. Lenda ou versão exagerada da realidade, aí estão as leis de Newton quais pioneiras indispensáveis quando o assunto é gravidade. O mesmo se dá com inquietações d’alma, coisas que elevam-nos o espírito ou, ao menos, deixam tudo ainda mais interessante mesmo que a experiência seja francamente materialista-existencialista. Na literatura brasileira, caso dos mais notáveis é o de Inácio, personagem de Machado de Assis no conto Uns Braços. Adolescente na efervescência de seus quinze anos, Inácio súbita e incontidamente se encanta pelos braços de D. Severina, esposa do solicitador Borges. Às refeições, os braços desnudos da mulher que já gastara todos os vestidos de mangas compridas. Um jovem é um jovem e isto basta. Braços lhe bastam, mesmo que não lhe abracem. “Nunca ele pôs os olhos nos braços de D. Severina que se não esquecesse de si e de tudo”, alerta-nos o narrador. Uma sutil minúcia que aproxima cronistas e contistas dos físicos mais relevantes. A cada olhar, a possibilidade de uma ruptura, da sinestesia a confundir o especialista pós-graduado. A verdade é que não sabemos quase nada de tudo. Por isso, ficamos com os detalhes. Por isso, tantas variações de um mesmo tom.

> Uns braços. Conto escrito por Machado de Assis. Publicado primeiramente em 1885 na Gazeta de Notícias. Incluído posteriormente no livro Várias Histórias (1896). Este conto foi relançado em 2017 pela SESI-SP Editora em formato de livro, ilustrado por Fernando Vilela.

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A Terceira Margem do Rio (1962), conto de João Guimarães Rosa


Guimarães Rosa: um autor que só ele hoje. Não sem antes e para jamais. Sempre. Sem pressa. À margem literária. A terceira margem do rio e da vida.

A personagem-pai. Sem nome, sem outra coisa que não a vontade de lugar-nenhum, lugar-qualquer, todo-lugar.

No rio, não mais um cumpridor, ordeiro, positivo. Apenas tempo e demoramento.

O filho, a família, os vizinhos e os distantes. Ninguém para o entendimento. Seguir em frente ou temer a morte decidem os seus. Uma história ou também outra estória. De passagem e paragem.

O velho ruma de si para o eterno, mas sem nunca chegar.

Guimarães, aqui e acolá, ou talvez por aí, sempre flor, rosa e cravo, como só ele soubesse que a canoa resistirá nalgum canto ou conto.

Depois, na vagação do rio ou nos rasos do mundo, um sobre-esquecer anuviado por um vulto sem beiradas; dentro do rio-corpo, o medo sem perdão segue desrumado.

Naufrágio e renascimento. Um conto encontro com a vida.

> A Terceira Margem do Rio. Conto escrito por João Guimarães Rosa, publicado originalmente no livro Primeiras Estórias (1962).

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