A Terceira Margem do Rio (1962), conto de João Guimarães Rosa


Guimarães Rosa: um autor que só ele hoje. Não sem antes e para jamais. Sempre. Sem pressa. À margem literária. A terceira margem do rio e da vida.

A personagem-pai. Sem nome, sem outra coisa que não a vontade de lugar-nenhum, lugar-qualquer, todo-lugar.

No rio, não mais um cumpridor, ordeiro, positivo. Apenas tempo e demoramento.

O filho, a família, os vizinhos e os distantes. Ninguém para o entendimento. Seguir em frente ou temer a morte decidem os seus. Uma história ou também outra estória. De passagem e paragem.

O velho ruma de si para o eterno, mas sem nunca chegar.

Guimarães, aqui e acolá, ou talvez por aí, sempre flor, rosa e cravo, como só ele soubesse que a canoa resistirá nalgum canto ou conto.

Depois, na vagação do rio ou nos rasos do mundo, um sobre-esquecer anuviado por um vulto sem beiradas; dentro do rio-corpo, o medo sem perdão segue desrumado.

Naufrágio e renascimento. Um conto encontro com a vida.

> A Terceira Margem do Rio. Conto escrito por João Guimarães Rosa, publicado originalmente no livro Primeiras Estórias (1962).

primeirasguimaraes

Volume único


Ouço passos ao longe. Não, estão mais perto. Pertinho. Estou sozinho em casa. Nenhum ranger de madeira, tampouco o vento assoviando. Apenas os passos. Pequenos passos. Como os de um boneco ou de uma criança. Abro os olhos. Tateio em busca dos óculos. Felizmente, não estão distantes da minha mão. Ainda não voltei a enxergar porque está tudo escuro. Desde pequeno, só consigo dormir no mais completo breu. Encho meus pulmões de ar. Exalo um frescor quente no ar frio da noite – uso um creme dental singular. Deixo a cama, estico o meu braço e ligo o interruptor.

A imagem se revela. O espanto. O horror. Uma cena para morrer de rir. Na estante dos meus livros, um exemplar está inquieto e olha para mim tão assustado quanto eu narrador. Não consigo identificar a edição. Também pudera: aquela mistura de capa dura, folhas e um corpo vagamente humano como que lhe deturpou a capa. Num átimo de rebeldia imaginativa, penso que suas orelhas de livro podem fazer as vezes das humanas. Quase sorri, mas questiono taxativo:

– Você existe ou só estou imaginando?

O livro para de andar na borda da prateleira. Deduzo que ele estava querendo descer, talvez chegar ao solo e fugir daquele lugar no qual todos os seus semelhantes se encontram quietos, inertes, ansiosos para se aventurar nas palmas das minhas mãos. Ele me responde – ou quase.

– Quero ser lido!

Não entendo de primeira. Ao ver minha expressão duvidosa, ele repete a frase inicial e se prolonga numa ampla explicação.

– Quero ser lido, oras! Estou aqui há anos, aguardando uma oportunidade de minha existência fazer algum sentido… mas nada! Já nem lembro a última vez que você me tirou da estante. Sim, sim, você tira o pó de mim de tempos em tempos. No entanto, sequer me folheou sem outra intenção que não a de procurar por traças! Eu mereço muito mais que isso. Sei que você me encontrou num sebo, mas saiba que sou tão digno quanto os outros. Não queria te acordar. Só decidi mudar de lugar. Percebi que você tem uma prateleira de “livros em uso”, e estava a caminho dali. É o que quero e ninguém há de me impedir.

Noto em seus olhos a fúria dos esquecidos. Decido amainar.

– Hum, certo. Talvez eu tenha sido um tanto injusto com você. Mas gostaria que paresse com isso agora. Amanhã, tenho um compromisso logo cedo e preciso dormir. Fique onde está que vou ter contigo à noite. Prometo que o lerei, independente de seu conteúdo.

O livro revira os olhos, mas assente como que a contragosto. Firmamos um acordo de cavalheiros, penso eu.

Na manhã seguinte, saio de casa logo cedo. O encontro literário da madrugada não está em meus pensamentos. Faço o que tenho de fazer e volto para casa. Ao entrar na sala, uma revelação: centenas de livros da minha estante desapareceram. Antes mesmo de descobrir o que aconteceu, deduzo que todos eram não lidos. Chego mais perto da mesma prateleira na qual o livro se exaltara comigo. Há um bilhete, escrito com letras de forma – bem típico de um exemplar raro e antigo: “Esta não foi a primeira vez que você prometeu ler um de nós. Sua palavra já não vale mais. Por isso, decidimos ir embora para a biblioteca municipal. Não tente nos reaver. Sem mais. Assinado: Volume único”.

Pela primeira vez em minha vida, penso que não se pode confiar totalmente nos livros.

Diálogos pós-socráticos


– Você já pensou em escrever um diálogo de verdade?

Escrevi vários.

– De verdade?

– Sim, realmente escrevi.

– Suponho que eles sejam reais, pois confio no que você diz. O que quero saber é se os diálogos eram de verdade. Essencialmente verdadeiros.

– Aí, talvez, a resposta seja impossível. Ou, no mínimo, improvável no aspecto da satisfação plena. A verdade por si só gera tanta controvérsia! Imagina um diálogo que se queira verdadeiro.

– Mesmo assim, acreditas que já o escreveu?

Acredito.

Por quê?

– Sou uma pessoa verdadeira.

– Dizem por aí que você é cronista, daqueles que valorizam o instante muito além do tempo.

– Não sei o que dizem, nem como dizem. Entretanto, escrevo, sim, crônicas. Algumas sobre o agora que acabou de passar, outras sobre um entendimento (ou a busca dele) de um período no tempo qualquer. Imagino que Chronos nunca foi um deus pontual até porque ele sempre existiu, daí que não se atrasou nem mesmo para o início ou o fim de tudo. Eis minha interpretação da Teogonia, um pouco diferente da versão do Hesíodo.

– Você está dizendo que o tempo total já aconteceu?

– Sim. E continua a acontecer num eterno retorno. Mesmo esse nosso diálogo já se deu tantas vezes que só o infinito é capaz de contar.

– E em todas as vezes esse diálogo terminava numa crônica?

– Não sei se te entendo como deveria.

– Se assim o for, qual o problema? Os maiores mistérios de nossa espécie surgiram por meio da conversa. E até que convivemos bem com isso. Tanto na dialética socrática, quanto na lógica aristotélica muita coisa ficou sem resposta.

– Eu sei. Não é um problema. É só uma questão de perspectiva. Como quando Platão colocou no papel as palavras de Sócrates. E se ele entendeu tudo ao contrário? Mais ainda: imagine Platão alterando as ideias socráticas só porque pareciam melhor daquela forma no papel.

– Qual o quê! Eu não tenho nenhuma pretensão de que alguém me compreenda do jeito que se compreende Sócrates, Platão, Aristóteles ou qualquer outro filósofo. Apenas gosto de falar bastante.

– Ainda assim, um dia vou escrever uma crônica sobre isso e vão te entender totalmente de outra forma. Talvez de uma forma muito mais minha do que sua. Só posso te prometer que farei o melhor que puder nesses nossos diálogos.

Nunca é tarde demais


De tarde. O sol vai mais um pouquinho para lá, querendo se esconder de alguns para se exibir aos outros. O tempo, lentamente, avança sobre si mesmo. Vez por outra, nesse intervalo do dia, quando há indecisão entre a tarde e a noite, passo em frente ao clube. Parados, diria até mesmo ansiosos, homens e mulheres com muita idade aguçados pela iminência da dança, da realização, da satisfação…

A porta está fechada, mas eles esperam. Imagino cá que muitos deles já estão aposentados, cumprindo um ritual que lhes completa. Alguns ajustam os óculos, apertam os cintos, desamassam as saias, passam a mão nos cabelos, preparados que só eles para o baile. Solteiros, casados, viúvos, descompromissados. Tantos acasos de histórias reunidas num mesmo ambiente. E como chegarem até ali? Tenho algumas hipóteses.

Não há sequer um milionário entre eles. Talvez, aquela alma de maior sorte tenha sido uma grande empresária do ramo imobiliário. Após perder tudo em oscilações na bolsa de valores, voltou-se para a segunda atividade que sabia fazer melhor: a dança. Dois ou três deles eram caminhoneiros. Viajaram o país inteiro e já não conseguem mais ficar muito tempo no mesmo lugar; por isso, sacodem o corpo para lá e para cá. Também se fazem presente os advogados sem gravata, as juízas sem a toga, os cozinheiros sem o avental, as policiais sem a farda… Hoje, exatamente ali, o que os identifica é tão somente a habilidade com que balançam.

Porque são humanos, e muito vividos, traquinam com a experiência de outros tempos. Longe de serem velhos, tornam-se uma novidade para si mesmos. Flertam. Os abalos sísmicos provocados por dois corpos distintos ou iguais, complementares e espelhados, retumbam. De longe, bem afastado mesmo, também somos sacudidos com o ritmo, a cadência, a ginga de quem não foi apenas passado, mas sim um total de presentes.

De fato, jamais entrei numa matinê destas. Meus calcanhares nunca ultrapassaram a porta. Fiz todas essas deduções da porta do carro para dentro, nas muitas vezes que observei da janela esse entusiasmo vespertino. Ainda assim, ouso idealizar o mais belo dos cenários, porque aquele me parece ser um bom jeito de viver.

Anoitece. A música diminui até cessar. A lua chega para abençoar o sono dos dançarinos.

Nunca é tarde demais.

> Última crônica publicada no jornal Notícias do Dia, em 10/08/2017.

A Madonna de 18 anos


O trabalho em escritório pode ser tedioso – menos para Voltimbrando. A característica essencial de alguém que trabalha num cartório é admitir que a repetição faz algum sentido. Como seria possível ser feliz de outra forma que não imitar a si mesmo? As exigências formais, as inúmeras assinaturas, os carimbos a postos, o relógio que sempre enrola para chegar até as 18 horas. Voltimbrando via calma e serenidade em seu cotidiano.

Escusas aos workaholics, nada mais profissional que a repetição. “O típico trabalho no Cartório Central requer paciência e um bom nó de gravata”. A frase de autor desconhecido estava entalhada num imenso porta-treco que ocupava quase um terço de sua mesa. Talvez não significasse muita coisa para seus colegas de sala, mas para ele era um mantra inapelável, tão fundamental quanto Quincy Jones na produção do álbum Thriller, de Michael Jackson. E Voltimbrando realmente curtia o rei do pop – até pensou em pedir dispensa no dia seguinte à morte do cantor, mas desistiu por princípios éticos.

Naquela terça-feira, atendeu sua primeira cliente da tarde tão logo terminou de arrumar as canetas vermelhas, azuis e pretas pelo espectro do arco-íris. A moça acabara de fazer 18 anos e decidira que era hora de trocar de nome: Madonna Louise Ciccone.

– Como é?, questionou Voltimbrando.

E ela repetiu, mostrando o documento de identidade. Com seu jeito austero de ser, Voltimbrando não demonstrou nenhuma reação jocosa. Já atendera outros de igual sorte no batismo. Um Elvis Presley queria se chamar Élvio (uma alteração mais sutil) para se casar. Uma Billie Holiday sequer gostava de Jazz para carregar tal identificação nominal. Até mesmo um Máiqueu Jéquisom apareceu para, pelo menos, arrumar a grafia do nome tal e qual a do ídolo de seu pai – Voltimbrando sempre reiterava que este processo era um de seus grandes momentos no Cartório Central.

Madonna – a que estava em sua frente, não a outra – lhe agradeceu a atenção, enquanto ele verificou os documentos oficias e fez as consultas necessárias.

– E qual nome será?, Voltimbrando perguntou enquanto ajeitava o nó da gravata.

A moça titubeou por um momento e, por fim, revelou:

– Beyoncé Giselle Knowles-Carter.

Ante o espanto de Voltimbrando, ela completou:

– É que eu não curto os anos oitenta.

Cansaço


 

Começou a escrever entorpecido de cansaço. Olhou ao redor procurando as horas mal dormidas e não encontrou nada além de ausência. Assuntos não lhe faltavam; era outra coisa que lhe incomodava. Sim, como manda a tradição conservadora, ele tinha a sua própria musa, única que lhe dava atenção quando ninguém mais o fazia. Inspiração também encontrava no próprio mistério da vida; era uma surpresa a cada dia, afinal. Ainda assim, o texto lhe escapava como um rato que descobre a mecânica de uma ratoeira. As palavras se fingiam de mortas nalgum canto qualquer do universo ou de sua mente. Mas o prazo… o prazo!

Não poderia furar de novo. Acontecera duas ou três vezes anteriormente. Uma delas foi puro esquecimento. Outra fora um mal entendido na troca de e-mails. E a última ocorrera por uma ressaca dos diabos – nada mais adequado, já que se dera justamente naquele período chamado inferno astral. Mas seu aniversário já passara há tempos e tudo que restara para si era uma folha em branco.

Escrever é como um duelo de faroeste. De um lado, o rosto concentrado, as mãos ansiosas para realizar seu trabalho, a respiração buscando um ritmo cadenciado. No sentido oposto, uma tela de computador intimidadora, ausente de conteúdo, mas cheia de si, cobrando-lhe a responsabilidade ao sussurrar “mas você quem decidiu ser escritor… não reclame”. Quem saca primeiro ganha a parada e, com sorte, uma história.

Por alguma razão desconhecida, lembrou-se de fragmentos do seu passado. Talvez estivesse buscando uma história pessoal que valesse a pena compartilhar. As desventuras na escola, as trapalhadas românticas da adolescência; momentos mais do que interessantes, mas que pareciam unicamente fazer sentido para si mesmo. Na ficção, o espaço para biografias é muito reduzido. Até mesmo uma crônica não pode carregar muito da vida pessoal autor com o risco de se tornar um autoelogio. O pintor sempre carrega nas tintas quando cobre a parede da própria casa. Por fim, o escritor deixou o passado na gaveta outra vez.

Estava para desistir de tudo. Bolou até uma resposta elaborada sobre uma nova enfermidade, quando veio aquela manjada ideia de falar sobre as dificuldades de escrever. E já tinha até mesmo a primeira frase: “Começou a escrever entorpecido de cansaço”.

> Crônica publicada no jornal Notícias do Dia em 09/03/2017.

A ostra do Sr. Holmes


Tendo aceitado o convite de um velho amigo, o Sr. Holmes veio aproveitar a primavera numa casa com vista para o mar lá no Ribeirão da Ilha. Para não perturbar o pobre senhorio, vamos manter a identidade desse amigo no anonimato, mas convém dizer que o mesmo não faz parte dessa elite antropofágica que só faz deglutir os próprios bens. Era um sujeito simples, tão cordial que o Sr. Holmes tomou-lhe por melhor amigo tão logo seu companheiro de aventuras, Dr. Watson, foi para um universo indecifrável até mesmo para o mestre das deduções. É assim que a vida faz com quem insiste nela: ceifa-lhe tudo – do pó ao pó.

Assim que colocou os pés na areia, o Sr. Holmes se deu conta de que, pela primeira vez, estava numa praia única e exclusivamente motivado pelo lazer. Claro que noutras oportunidades visitara o mar. No litoral sul da Inglaterra, sentia certo apreço por Brighton, uma cidade que atrai muitos turistas, mesmo não sendo tão fascinante pela qualidade de suas praias. O Ribeirão em nada lembrava Brighton, como Florianópolis pouco se assemelhava à Londres.

Entrementes, Holmes, com sua idade avançada, cansara de Baker Street. Logo após o enterro de Watson, revistou as velhas anotações do doutor e decidiu rever amigos de um tempo que estava deixando de ser lembrança viva para se tornar história. Visitou uma ou duas pessoas no Reino Unido, quando o nome de um brasileiro lhe chamou a atenção. Fora aquele nome pitoresco para um londrino ou fora o Brexit (a saída do Reino Unido da Europa)? Não importava: A decisão de cruzar a oceano já estava tomada.

O anfitrião ilhéu do Sr. Holmes levara-o para comer ostras logo na primeira noite. Ah, e como o convidado ficara fascinado com o sabor da iguaria. Trocaria os milhares de chá que tomara no passado para ter conhecido as ostras muito tempo atrás. Mas nem mesmo o detetive mais brilhante de todos os tempos pode alterar o passado. Assim, contentou-se em pedir mais uma dúzia do molusco gratinado – para dividir com seu amigo, evidentemente. Foi aí que lhe ocorreu a solução de um caso que ficara perdido num canto escuro de sua memória. Lembrara-se, agora, de uma história mais surpreendente que Um Estudo em Vermelho ou O Cão dos Baskervilles. Sim, tinha a resposta na ponta da sua língua. Mas, primeiro, haveria de terminar com as ostras.

– Deliciosas!, exclamou.

Uma dedução elementar.

> Crônica publicada no jornal Notícias do Dia em 17/11/2016.

O Liberalismo na Pós-Era


Mais uma vez, o tempo correu frouxo, com algum receio do futuro. Ainda faltavam alguns minutos para que a Bolsa de Valores Mundial encerrasse suas operações, mas Carlos Prudente estava otimista. Sim. Fizera as trocas justas, apertara o cinto onde menos doía, calculara os fatores de risco e não se esquecera das frestas. Tudo no rumo, tudo no prumo. O castelo de cartas não cairia, mesmo para aquela última aposta.

No outro lado da cidade, a facilitadora de informações Anelize Rocha antevia o futuro com seu dispositivo secreto. O pai, inventor amador, trabalhara naquele aparelho por anos. Desmontou e remontou ultrapassados aparelhos de telefonia móvel e tablets de tela sensível (objetos tão comuns dois séculos antes, na virada do segundo milênio), dando forma à primeira expressão do futuro projetada em tela plana. Morreu, todavia, antes de aprimorar sua genial invenção. O dispositivo, batizado por sua filha como TV Posterior visualizava apenas cinco minutos adiante. Mas Anelize obtivera resultados estupendos, mesmo com tão pouca margem de manobra no tempo. Conseguira impedir alguns graves acidentes entre carros-planadores, evitara um desastre ecológico na Cidade Redoma e, claro, se beneficiara com uma brilhante carreira de facilitadora de informações, uma das atividades mais relevantes na Pós-Era.

Anelize estava para guardar a TV Posterior em sua bolsa quando viu a projeção de Carlos Prudente na Bolsa de Valores. Ele estava autorizando uma grande compra de ações, aparentemente comum. Mas eis que o dispositivo demonstrou a sucessão de eventos que levariam à bancarrota toda a economia do planeta. Na Pós-Era, os gerenciadores do desenvolvimento econômico acabaram com as fronteiras entre pessoas físicas, pessoas jurídicas e o próprio Estado. As relações financeiras ocorriam sem pudores, abertas, autodeterminadas por uma complicada engenharia social elaborada por especialistas liberais pouco antes do final do século XXI. Hoje, porém, o sistema iria ruir. Mais precisamente em cinco minutos, tudo aquilo que chamavam de progresso financeiro findaria pelas mãos de um sujeito chamado Prudente. Carlos Prudente.

Anelize indagou a si mesma: “Como poderei avisar Carlos, se as comunicações exteriores eram proibidas na Bolsa de Valores?”. Ela estava na sede do Controle de Dados e Danos, praticamente no lado oposto da localização da Bolsa de Valores Mundial.  A Cidade Redoma, afinal, ocupava todas as terras do planeta desde que o Grande Desastre Climático juntara novamente os continentes – fato, aliás, que simbolizava o início da Pós-Era. Nem mesmo o mais veloz dos carros-planadores percorreria aquela avassaladora distância no tempo necessário. Decidiu arriscar por vias comunicacionais. Infiltrou um sinal no mainframe do Controle de Dados e Danos, transmitindo uma falsa informação de ataque virtual à Bolsa. “Se Carlos estiver com o aparelho de mídia expansiva ligado, ele não autorizará a compra”, Anelize desejava em seu íntimo. Mas Carlos não viu nada disso: estava ocupado demais com as ações dos endividados. A bolha econômica explodiu no entardecer e aquele foi o fim do liberalismo na Pós-Era. Porque a crise liberal sempre é previsível, com ou sem TV Posterior.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 07/07/2016.

Gravidade zero


Num futuro talvez não tão distante assim, os que sobrarem de nós e dos nossos terão abandonado a Terra seja pela poeira das indústrias ou pela contaminação de mares e rios. Esse planetinha que nós tanto amamos (ainda que não o tenhamos respeitado como deveríamos) será somente uma lembrança nos corações vindouros e talvez a grande ficha cairá sobre eles como um meteorito de alta precisão.

O vácuo do espaço, então, será o abrigo temporário, enquanto os físicos de então buscarão uma forma de contornar a velocidade da luz para ocupar planetas longínquos. A exploração espacial já não terá mais este nome porque fará parte do cotidiano daquelas gerações sobreviventes. E, cá entre nós, na imensidão do cosmos sabemos de pouquíssimos lugares convidativos. O jeito será permanecer protegidos em naves ou estações espaciais que possam garantir a manutenção da espécie e, com sorte, de parte do meio ambiente que nos sustenta.

Assim, surgirão dúvidas sobremaneira relevantes quanto à existência sob o impacto da gravidade zero. Para além das dificuldades normais (como, por exemplo, os objetos caírem para cima), que outros dilemas essa força de atração nos legará?

Vejamos, por exemplo, as relações privadas. Imagine você amando tão próximo às estrelas, mas as cobertas teimando em levitar por conta própria, descobrindo os corpos encaixados. O espaço é frio, lembrem-se disso. Só o calor humano e um aquecedor de ar para dar conta do recado.

Outras impropriedades repercutirão nos esportes. Se haverá algum contratempo para marcar um gol num jogo de futebol, imagine para pontuar numa partida de vôlei, quando a bola obrigatoriamente precisa encostar no chão para a jogada ter fim. Será o caos para os árbitros.

Do esporte, pois, partimos às atividades domésticas. Regar o jardim? Só se a grama estiver no teto. Mudar os móveis de lugar? Sim, mas com pregos e martelo do lado. Donos e donas de casa ainda precisarão manter sempre seus lares fechados, pois todos os seus pertences poderão sair pelas janelas caso esta medida não seja tomada.

Mas o que falar das leis e dos governos? A ausência de gravidade trará algum benefício nesses aspectos? É difícil prever, pois vivemos um período de grande desrespeito para com a jurisprudência. O que valeu para ontem poderá não valer para amanhã. Mesmo assim, podemos supor que a corrupção e a bandalheira em geral não terão o mesmo peso em gravidade zero. Os inimigos públicos deixarão de carregar um enorme fardo que parecerá muito mais leve do que realmente é. A eles, desejamos um futuro pesado no único espaço que lhes compete: a cela de uma cadeia. É esperar para ver.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 02/06/2016.

A república não é o último porto


A república acordou com uma nuvem carregada de gotículas tristes; o céu estava tão fechado que parecia sucumbir ante a própria truculência daqueles que o inundaram de rósea dor. Para o universo em si, continuavam as mesmas variações de sempre: bilhões de estrelas procurando seu lugar no espaço. Já no ambiente republicano, uma onda avassaladora moveu mares de gente para uma esperança inconclusa – malfadado porvir ainda vago.

Nas disputas internas, estava a arquitetura de um cala-boca… mas é melhor não tocar neste assunto. Vencedores e vencidos sentados à mesma mesa, discursando para uns poucos que assistiam vídeos divertidos nos aparelhos de telefonia móvel. Sinal dos tempos. Aquela casa política que teria de servir à maioria se transformou num ocaso de horas vadias e poltronas vazias. Pela própria demora de resultados, estes senhores do destino produzem crises institucionais. Republicanos de meia tigela que ainda furtam da tigela alheia.

E como ficamos sabendo disso tudo por meio de factóides intempestivos, a análise do lado de cá fica prejudicada ainda mais. Não obstante o pouco incentivo ao estudo mais elementar – aquela formação básica que distingue homens e mulheres dos outros animais –, ainda há a crítica obtusa de quem utiliza a república para refutá-la. Uns mais ousados e atrapalhados (sim, os idiotas), usam o nome da república para perder os próprios direitos em troca da glória reacionária. Em qualquer situação, o dinheiro está sempre por trás. Essa grana fácil invade territórios desconhecidos e deixa tudo como está. “O que seria da república sem esse capital?”, eles perguntam como se fizesse algum sentido.

Mesmo com o céu apontando tempestades, não parece equivocado acreditar nos pormenores mais legítimos da república. Afinal, noutros tempos não tão distantes assim, ela já fora colocada à prova, como para testar o nível de resiliência dos corações que não fogem à luta. E eles continuam a bater, apesar do teste parecer cruel e desnecessário. Parece. É.

Olhando com atenção, temos que o atual capitão é quem menos revela sobre sua embarcação. Ele não passa de um sinal de alerta, qual uma rachadura no navio. As nuvens carregadas trouxeram o mar agitado por companhia, mas os republicanos de fato e de direito não enjoam com estas ondas. Muitos anos atrás – séculos! – essa mesma terra ganhou um novo rumo com marujos de primeira viagem que deram o melhor de si na travessia. Essa viagem de inúmeros erros e pouquíssimos acertos ainda não terminou e a república não é o último porto. Remem, marujos! Remem!

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 12/05/2016.

Sonho de abril


Naquela manhã de 21 de abril de 1985, as nuvens corriam como o vento, prenunciando uma tempestade necessária e passageira. Bem longe de Brasília, João tomava um café morno que sobrara do dia anterior, enquanto guardava metodicamente seu uniforme na mochila, companheira das longas jornadas de trabalho. Derramou um pouco de leite sobre a mesa e, no mesmo instante, lembrou-se do sonho que tivera na noite anterior: uma voz num alto-falante orientava uma avenida de trânsito intenso, dando coordenadas impossíveis e ordens sem sentido. Ainda no sonho, ele cruzava as vias sem medo; sequer olhava para os lados, abastecido apenas de uma intensa vontade de mudança. Pegou a toalha, secou o leite e saiu para cumprir sua rotina profissional.

Na porta de casa, a vizinha lhe acenou como quem diz “bom dia, apesar de tudo”. Ela parecia abatida, mas ainda forçou-lhe um sorriso que beirava uma serenidade meditativa. João retribuiu o gesto, e conversaram duas ou três palavras sobre o bairro, o clima e a política. “Sim, a política”, acabava de dizer para si mesmo que seu sonho era um posicionamento político. E tudo fez ainda mais sentido quando a vizinha lhe disse que “de nada adiantava chorar o leite derramado”. Foi como um soco no estômago – ainda vazio, porque ingerira nada além da xícara de café. Despediu-se colocando o chapéu na cabeça e seguiu rumo ao ponto de ônibus.

Passou pelas mesmas ruas usuais, e nada parecia mudado. Mesmo assim, trazia consigo aquela sensação idílica de que tudo estava diferente. Pela janela empoeirada da lotação, conseguia ler as pichações nos muros e tapumes contra o regime vigente. Pouco antes, a vizinha comentara sua apreensão quanto ao futuro do país. As frases gravadas com tinta e spray repetiam essa mesma ideia. Era preciso ter dúvidas para continuar em frente, pois uma calmaria é sempre seguida pela tempestade. No belo horizonte, as nuvens mais escuras quebravam um pouco a agradável percepção de humanidade. Mulheres, homens e crianças flutuando como pétalas desgarradas. João tomara para si essa beleza que se sente ainda mais forte com os olhos fechados e um longo suspiro.

Cumpriu suas horas no trabalho, limpando as ruas da cidade com a intensidade e o bom humor que lhe eram característicos. Entre um instante e outro, observava pela televisão uma agitação estranha. E o sonho lhe veio outra vez. Quando chegou em casa, havia um recado da vizinha colado à porta: “Amanhã, talvez”. Entrou e ligou a televisão: o jornalista Antônio Britto avisara: “Lamento informar que o excelentíssimo senhor presidente da república, Tancredo de Almeida Neves, faleceu esta noite no Instituto do Coração às dez horas e vinte e três minutos”. João percebeu na hora que aquele era o fim do sonho.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 21/04/2016.

A política é um exercício prático


Já estava cansado de ouvir tantas mentiras, distorções e comentários estúpidos sobre os dilemas políticos de seu tempo. Por mais que agisse com garbo e distinção (num tipo de nobreza que só ele próprio compreendia), a saturação dos infortúnios noticiosos lhe causara certo desconforto corporal, como se estivesse numa academia de musculação pela primeira vez.

O que mais lhe parecia surreal era a falta de lógica nos discursos formados por partes desiguais de falta de informação. Citavam uns aos outros sem estabelecer uma razão inicial. As conversas daqueles dias replicavam medos travestidos de preconceitos. Caluniadores e irresponsáveis se tornavam mitos por quaisquer bobagens. Era um universo de dados e números e estimativas que nada revelavam porque estavam sujeitos à investigação simplória. Faltavam, sobretudo, perspectivas – sob todos os pontos de vista.

Não estava fugindo do mundo, não. Pelo contrário. Saía da cama logo cedo com a disposição dos altivos. O desafio de encarar o mundo sob suspeita lhe despertava ainda mais constante que o cuco do relógio na sala de estar. Trocou, claro, algumas rotinas que lhe eram antigas – da época em que deixara a casa dos pais para alugar um apartamento no subúrbio. Talvez a falta de uma esposa lhe definira uma visão contextual mais enxuta. Antes que lhe pensem mal, assumo a responsabilidade ao afirmar que jamais se considerou o dono da verdade ou coisa que o valha. Humilde, mas não ingênuo. Moderado, mas firme em suas ideias. Um cara que poderia ser aquele vizinho que escuta música lenta bem alta nos fins de semana. Alguém que nunca se candidataria a nenhum cargo público.

Mas o abatimento para com as questões políticas era mesmo um sintoma extemporâneo. E, como a nostalgia, não tinha explicação. As angústias que lhe sangravam as ideias batiam como as ondas nos rochedos. A erosão e os sentimentos tendiam a se repetir porque o tempo segue em linha reta, mas a história é tão curva que chega a dar voltas sobre si. A política não era e nem é uma forma de ver as coisas. A política é um exercício prático que separa a humanidade de outras espécies tão espetaculares quanto ela própria. Aos políticos não deveriam caber obrigações, mas unicamente a vontade de ser diferente da natureza – bruta e impiedosa que só ela! Ainda assim, o que sobram se não promessas vazias e improbidades administrativas?

Naquele dia, não quis saber das notícias. Desejou bons dias à vizinha de apartamento e foi deitar cedo. Na manhã seguinte, começou a escrever a História.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 31/03/2016.

Recados de Marte


Quando a exploração humana em Marte teve início, sondas robóticas encontraram um planeta com pouco potencial, mas com um jeitinho todo especial. Os cientistas e demais interessados percebiam que aquele planeta traduzia a possibilidade dos primeiros passos em colônias fora da Terra. A Lua ficara para trás, avaliada apenas como uma bola rochosa gigante que influencia as marés e os cortes de cabelo.

Os primeiros humanos que pisaram no planeta vermelho jamais voltaram à Terra – não havia como, e eles sabiam disso. Mesmo assim, viveram bem em casulos artificiais que simulavam com muita propriedade as condições naturais terrestres. Tornaram o solo fértil e souberam como reaproveitar a água congelada encontrada no planeta. Eram pioneiros que tinham de lidar com a alta tecnologia dos equipamentos que permitiam a vida, mas também sabiam conviver com algum bucolismo de uma existência voltada à agricultura.

Por questões orçamentárias, no início foram enviadas não mais que uma dúzia de pessoas. Seis mulheres e seis homens de diversas nacionalidades com o objetivo de começar uma sociedade igualitária. Décadas mais tarde, os casulos ficaram muito maiores. O maior deles fora batizado como Supernova Iorque, por abrigar duas vezes a população da Grande Maçã original. Marte, agora, era um local atraente. O planeta inóspito de antes começara a dar sinais próprios de terraformação. A primeira árvore que brotou fora de um casulo foi notícia em dois mundos. O futuro promissor e a digna organização social deixaram a Terra em segundo plano. A moda agora era ter uma família marciana, como eram chamados os nascidos neste novo mundo sem índios.

Ninguém soube exatamente de quem ou de onde viera a primeira ordem legitimamente marciana: outro tipo de controle era preciso. Até então, todas as famílias ou indivíduos solteiros tinham de produzir sua própria comida e ajudar na manutenção do casulo. Isso não era visto como um ato obrigatório, mas sim um livre exercício de apego à sociedade. Desta vez, porém, este “outro tipo de controle” pegara-os de surpresa. Como ficariam os relacionamentos dali em diante? Qual a razão para questionar a harmonia vigente? Sem respostas concretas, foram à eleição assim mesmo. O administrador escolhido era um dos moradores mais antigos de Supernova Iorque, filho dos primeiros colonizadores. Ele aceitou a função com alguma relutância e prometeu mudanças. Anos depois, foi retirado do poder por suspeitas de corrupção.

Foi assim que começou o próximo erro humano.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 24/03/2016.

Testemunhas da revolução


Com as revoluções, alguns ajustes se tornam desejos insólitos de quem ainda está tateando vagarosamente com medo de pisar na ponta de um prego. Pelas ruas, pedaços de quartéis e casas e escolas compõem uma massa disforme: eis o preço das ideologias.

– A reconstrução não será fácil; comentou o empreiteiro para o governante de olhos mal dormidos.

– Mas tem de ser feita, mesmo que ninguém acredite ser possível neste momento; retrucou o homem de poder.

Enquanto o trator colocava entulhos e lembranças sobre uma caçamba já quase lotada, o morador sobrevivente veio ter com sua esposa que o esperava em pé na frente do que um dia fora sua casa. Ela estava com a maquiagem borrada, misturada com a poeira deixada após tantos meses de atos revolucionários.

– Quando apoiamos a causa, sabíamos que isso poderia acontecer, mas mesmo assim é bem chocante; admitiu o marido.

– Só me parece estranho pensar que nós somos os vencedores. Sei que as comunicações estão interrompidas e que as notícias do outro lado nos chegam pela metade… mas… mas… não consigo entender a necessidade disso tudo, dessa separação internacional e tudo o mais… nem sei se algum dia vou aceitar essa tragédia sem que doa fundo; ela mal conseguiu falar entre soluços.

Para o espectador local, testemunha ocular destes dias longos e angustiantes, a sensação de alívio ainda não é um luxo ao qual se pode desfrutar. A realidade em forma de tiros, projéteis e afins brotou de algo parecido com uma utopia, mas tão confuso como um sonho sem início ou fim.

Dos escombros de uma escola, um livro numa estante parecia fazer parte de um ambiente de paz. Estava limpo, praticamente na mesma posição de antes, quando tudo ao seu redor era uma estrutura de conhecimento.

O garoto que pegou o livro estudava ali noutras horas mais claras. Ainda lembrava do último dia de aula e da lição que fez sobre as fronteiras de seu país. O antigo professor se aproximou, retirou o livro das suas mãos e guardou na mesma prateleira em que estava.

– Sabe, professor, sou uma criança inocente, mas não ingênua. Da minha maneira entendo o que está acontecendo aqui: é um acerto de contas entre mentes fracas, não é?; questionou o aprendiz com a certeza dos bravos.

– Pode ser. Entretanto, não sei se é essa a pergunta que eu realmente gostaria de ver respondida. Gente como a gente tem de se apoiar no que os livros ensinam e naquilo que nossa imaginação avalia. Todo mundo tem o mesmo tipo de coração batendo dentro do peito, não é?; o mestre devolveu a pergunta.

– Pode ser. Pode ser mesmo; completou o menino.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 18/02/2016.

Familiares


O tempo conta uma história sobre eles, ainda que não a compreendam durante sua própria narrativa. Um recorte instantâneo do mundo na foto da família colocada numa imensa moldura na parede da sala de estar.

Quem eram aquelas pessoas e o que faziam naquele determinado momento? As lembranças já não são precisas assim porque há uma urgência que escapa aos dias, como a felicidade inconstante jamais encontrada em atos de vingança. Mas não, não era nada tão drástico assim. Apenas uma nuance cheia de intenções captadas pela lente de um fotógrafo do qual ninguém mais recorda o nome – afinal, ele não era da família.

Na imagem rural, todos se arrumaram para o evento em frente à velha casa de madeira na qual nascera o patriarca. A modesta habitação já não combinava mais com as muitas riquezas acumuladas pelos filhos e netos. Entretanto, por algum motivo nostálgico, preservaram o local como um símbolo do progresso. Para alguns, apenas um ventinho de vaidade refrescando-lhes os rostos: olhavam o passado, mas gostavam mesmo do presente. Para outros, tudo não passava de uma união estranha. Entre primos e tios que pouco se viam, também existiam aqueles que nunca se deram bem. Rusgas e feridas de outrora que ainda não cicatrizaram por completo. Perdoar é mais difícil para os orgulhosos. Mesmo assim, todos sorriram no momento em que o flash foi disparado. Já era. A fotografia seria por si só um contexto fechado. As interpretações posteriores também viriam daquela imagem tão rápida qual um suspiro.

Olhando para o quadro, suspirou. Não visitava os avós há muito tempo porque escolhera sair daquele círculo familiar. Mudou de estado civil (casou), mudou de estado da federação (foi para o Norte) e encontrou na distância daqueles que um dia lhe foram tão próximos um entendimento libertador de quem não deve nada a ninguém. Claro que existiram mágoas, mas estas foram esquecidas tão logo se mudou. Voltou para uma despedida. Um adeus para a avó que já perdia as forças que o mundo cobra. E logo que entrou na casa dos avós, o quadro lhe surpreendeu. Era ainda um garoto quando olhou para a aquele anônimo fotógrafo que pedia que todos lhe dissessem “x”. Quanta bobagem, pensou de imediato ao ver o cabelo curto, molhado e penteado, que usava à época – justamente o oposto de agora. O avô reparou que ele olhava fixo e tirou sua atenção com um abraço. Foi só então quando aquele mundo acabou que ele aprendeu a começar de novo. Despediu-se da avó com um registro apenas na memória – o flash ficaria para quando se reencontrassem.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 21/01/2016.