O avesso da ilusão


A mentira existe apesar de, confessadamente, não ser uma verdade. Quem admira a falta de sentido poderá encontrar alguma paz no avesso da ilusão. Tudo ao contrário, qual um jogo vencido apenas pela torcida. Contemplar inverdades ajuda na compreensão do caráter dalgum sujeito que se apresenta inocente. Uma estória estagiando no porto seguro (se alguém puder garantir a estadia). Os credores da realidade também contam causos de arrepiar os pelos da nuca. As pontas lisas dos dedos passam incólumes à febre terçã dos mentirosos. Os guardiões da ficção passaram as duas semanas anteriores no leito de um rio amargurado. Enquanto se escondiam das doenças, os detratores destes causos, pois, municiaram-se de especulações aleatórias. Quem pode garantir qualquer narrativa quando os profetas estão ausentes? Bondade sua confiar em mim após tantos deslizes. A ilha da imaginação teve origem numa falsidade continental. As placas tectônicas colidiram e as consequências ainda não foram todas inventadas. Maldade minha não te avisar deste conteúdo fajuto. Já é de manhã, mas nem mesmo anoiteceu. O vento matinal leva as mentiras para longe dos covardes. Enganaram-me dizendo que o café estava pronto.

Trapaça (2013), de David O. Russell


O bom mentiroso acredita na própria mentira. Mas não basta fingir como quem esconde a idade para parecer mais novo. As inverdades se encaixam no universo real, com as leis as posturas éticas endossando um comportamento bastante suspeito. No cinema, a ficção abre a cena como o cerne da questão. Arte alguma existiria sem as mentiras sinceras. Talvez até mesmo o mundo tal como o conhecemos seja uma grande armação bolada por golpistas como os do filme Trapaça (2013), de David O. Russell.

As personagens que protagonizam esta história ambientada nos Estados Unidos no final da década de 1970 são experientes jogadores. As diferenças entre os vitoriosos e os perdedores residem numa linha de fé que se rompe quando o desejo fala mais alto. E o vigarista Irving Rosenfeld (Christian Bale) irrompe da mediocridade social para fé absoluta no real. Claro que ele tropeça, mas sempre se levanta sozinho ou com a ajuda da sua companheira de farsa Sydney Prosser (Amy Adams). Amante e parceira de negócios, Prosser dobra o agente do FBI, Richie DiMaso (Bradley Cooper) apenas com a verdade, nada mais que a verdade – algo sobremaneira interessante para uma mentirosa profissional. Eis o momento no qual a corda da inverdade se rompe e tudo passa a ser o contrário do que é.

Irving e Sydney são obrigados a colaborar com o FBI para prender figurões que se corrompem por dinheiro. Nalguma atualização do ditado popular, “ladrão que rouba ladrão colabora com o FBI”. Trágicas verdades de um sistema legal afetado, manipulado ao sabor dos agentes que lhe preenchem as vagas.

Numa digressão sociológica, uma brecha para a análise das instituições sociais realizada por Max Webber. Em algum ponto de suas próprias histórias, os fins primeiros das instituições se perdem e o objetivo dos indivíduos que as compõem passa a ser a manutenção de seus privilégios e/ou vantagens. Até mesmo as armadilhas se institucionalizam. Menos uma vitória dos criminosos, mais uma incapacidade da justiça, das leis e de tudo o mais em perceber que a sociedade existe a partir de uma trapaça sem lucro para a imensa maioria de seus integrantes.

Mentir pode não ser necessário, mas parece ser inevitável.

Christian Bale;Amy Adams;Bradley Cooper

F for Fake – Verdades e Mentiras (1973), de Orson Welles


Orson Welles foi um poeta que fez cinema. Fernando Pessoa, que não fez cinema e sim poesia, confirmou que “O poeta é um fingidor. / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente”. E quais os limites entre a sinceridade e o fingimento?

No filme F for Fake – Verdades e Mentiras (1973), o diretor, ator e roteirista usa e abusa das linguagens cinematográfica e poética para contar uma história farsesca com elementos de realidade construída. Falsários e falsificadores apresentam relatos conflitantes e, na maioria das vezes, desconfiáveis. E tudo se dá em ritmo de documentário. Ao espectador, resta crer no que mais lhe convém ou, em caso extremo, duvidar de tudo e de todos.

A obra de mestre Cidadão Kane (1941) antecipava o mundo de hoje, deslumbrado em si e por si mesmo. Verdades e Mentiras inverte tal ideia, quase como uma metáfora nestes tempos de pós-verdades. O final do século XX e este início do XXI trouxeram de forma abrupta a negação como postura intelectual, dado que a dúvida deixou de entusiasmar os inteligentes e foi usurpada por idiotas inconsequentes. A pós-modernidade não nos trouxe uma noção de conjunto da obra e, pelo contrário, fragmentou ainda mais as pessoas nesta má distribuída sociedade do capital.

Ainda que F for Fake aborde essencialmente o mundo da pintura, o dilema “realidade versus ficção” pode ser aplicado à sociedade contemporânea. Ao insinuar que o mundo concreto existe mesmo que seja etéreo, Orson Welles, novamente flerta com o jornalismo e a imaginação. Por que novamente? Oras, impossível conhecer sua trajetória nas artes sem levar em conta o episódio no qual dramatizou o livro A Guerra dos Mundos, de H. G. Wells, numa rádio americana em 30 de outubro de 1938. A transmissão narrou com tons jornalísticos uma fictícia invasão de alienígenas, causando uma dose de pânico em algumas pessoas que, desavisadas ou não, entenderam se tratar de um programa real. Ainda que, possivelmente, não fosse a intenção original de Welles naquela ocasião, seu amplo domínio da dramaturgia trouxe à tona um desejo ardente de alguns seres humanos em se deixar iludir – e as fake news atuais tão somente se aproveitam desta característica fragilizada. Qual um poeta, também o próprio autor foi seu maior fingidor.

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