País crônico


Brasília, nossa capital, foi planejada de forma quase milimétrica, tendo uma base concreta e outra cheia de intenções, esta última vinda da imaginação do arquiteto Oscar Niemeyer. Peguemos o Palácio do Congresso Nacional como exemplo, com suas cúpulas divergentes, mas complementares. Ali temos as retas e curvas que nos impressionam muito mais do que a vida que lá dentro se descortina. E, então, o intento dramático do arquiteto se desvanece na impropriedade moral. O sistema, sempre invisível, não quer saber de formas geométricas, mas unicamente de praticidade. A cidade planejada, única num país crônico, não escapa aos mesmos dilemas essenciais de décadas, séculos ou milênios passados. Vive-se do conflito, no conflito e para o conflito.

Com a redemocratização do país, simbolizada pela constituição de 1988, houve uma sensação de que determinados vícios sistemáticos ficariam para trás. Mas não foi bem assim que aconteceu. De algum modo irônico, Niemeyer estava certo: não há só linhas retas no cenário político. A construção dessa nova república sem os cerceamentos de antes também possibilitou a cisão entre as ideologias e a governabilidade. Com algum medo do retrocesso, preservou-se a segurança legal no lugar da coerência partidária. O impeachment do então presidente Fernando Collor, em 1992, entrou nesse embalo, e segurou as rédeas da democracia com um custo que aparentou ser relativamente pequeno. Mas não foi. Por vezes, as políticas públicas ganharam mais relevância que os próprios brasileiros. Eis o nascimento da era da informação e, também, da contra-informação. Para continuar naquela pseudo-coerência partidária, questionava-se tudo com discursos inflamados e, quase sempre, vazios como a barriga do pobre. Era – e ainda é – preciso fazer concessões.

Nestes quase 30 anos de redemocratização, o contexto do brasileiro foi um tanto diferente daquele dos políticos. Os conflitos que se desenharam (sem os traços limpos dos prédios brasilienses) tiveram muito mais a ver com uma urgência financeira do que com uma realidade econômica. Dependendo do contexto, o brasileiro pouco sentiu crises internacionais como a dos Tigres Asiáticos, em 1997, ou a Bolha Imobiliária dos Estados Unidos, em 2007. E é a partir dos contextos que as coisas se complicam.

A cena atual revela um filme de preconceitos, medos e frustrações. Divisão de ricos e pobres? Quem fala isso só chegou uns 10.000 anos atrasado. A eterna luta de classes só fez crescer nesse modelo capitalista de crise-superação-crise. Nas experiências socialistas-comunistas, que nunca foram plenas de fato, também não foi diferente. Já a história republicana brasileira é auto-regulada de cima para baixo. Fica impossível pensar em algum levante popular que tenha fundamentalmente alterado o quadro político. E parece simbólico que a própria redemocratização se deu por meio de uma solução indireta – e é ainda mais simbólico que o presidente indiretamente eleito sequer tenha tomado posse. E há ainda outro desequilíbrio político-econômico: A capital do país precisa do capital estrangeiro. A unificação dos mercados externos não emitiu bônus para as nações em desenvolvimento. Para além da economia, nosso Estado acaba sugerindo um intervencionismo de ocasião, que flerta com o liberalismo. A tradição americana, vitoriosa no decorrer do século XX, ainda continua a ensinar. Desse modo, temos uma escola Keynesiana frequentada por alunos patrocinados pelo capital especulativo. E, por consequência, não há renovação econômica – aquilo que no vocabulário atual é chamado de economia sustentável. O modernismo brasileiro, que sempre chega atrasado, deu novos significados à social-democracia.

Muitos têm assumido um ponto de partida e, só então, buscam os motivos para corroborar suas expectativas. As eleições presidenciais deste ano foram o sinal derradeiro desta raiva incontida. Quando ícones superam contextos, caímos na armadilha dos argumentos frágeis. Já vimos este filme antes, com o autoritarismo se fingindo de solução e com a guerra se apresentando como recurso para a paz. Ficamos muito mais longe de um debate de ideias e muito mais perto de uma retórica revanchista. Um país coeso foi deixado de lado: todos estavam ocupados demais em seus sentimentos unilaterais ausentes de qualquer tipo de amor. Nestes embates civis, nunca há vencedores, independente do resultado que sai das urnas. Logo, não podemos estranhar que mais de 30 milhões de cidadãos deixaram de votar, seja pela desorganização do sistema ou pela pouca importância à matéria. Mesmo assim, é muita falta de perspectiva acreditar num cenário golpista, seja com uma virada ideológica à esquerda ou à direita. A social-democracia à brasileira em si não está abalada, mas sim estigmatizada. E, em sua modernidade dilatada, não há espaço para as revoluções, posto que, para alcançar o bem estar social, a dependência do capital privado ainda seja necessária. As inconstâncias progressistas existem, não se pode negar. Até mesmo porque as leis dependem de interpretação, o que se deturpa ainda mais com a morosidade judiciária. Entrementes, os direitos e deveres elementares seguem firmes, apesar da irrisória contrapartida do estado/governo.

Brasília persiste em pé, tanto física quanto politicamente. O côncavo e o convexo do Congresso continuam a se encontrar enquanto os temas reformistas não estão na pauta do dia. E quando pensarem sobre tudo isso, os brasileiros perceberão que assumiram dívidas para consigo mesmos. Quem sabe não temos agora uma oportunidade de reconciliação. Resta saber se os agentes políticos também vão aproveitar esta chance.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 30/10/2014.

(O texto original foi ampliado para a postagem no Blog)

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